A Lenda do Negrinho do Pastoreio

A Lenda do Negrinho do Pastoreio - uma analogia com a jornada do Herói

Palavras-chave: mito; lenda; herói; arquétipo; individuação; inconsciente coletivo

Introdução

O Brasil, por ser um país com vasto território, por ter sido colonizado por vários povos do continente europeu, ter recebido escravos africanos e, todos esses terem se miscigenado ao aborígene, desenvolveu uma pluralidade racial e cultural, e, de acordo com a distribuição geográfica, criou mitos e lendas próprios a cada região.

Um personagem lendário, muito importante, na região sul, mais especificamente, no Rio Grande do Sul, é o Negrinho do Pastoreio, lenda escolhida para esse artigo por denotar facetas significativas da brasilidade em sua estrutura.

Esse artigo objetiva a demonstração de que o arquétipo do herói é vivenciado por qualquer pessoa, em qualquer momento histórico, muitas vezes, em desacordo com as definições usuais, em razão de que, tanto o mito quanto a lenda, tendem a modificar-se, em conseqüência das alterações que a própria humanidade experimenta. E, que o arquétipo do herói pode ser encontrado dentro de nosso próprio folclore, demonstrando a universalidade do mesmo.

Lenda e mito: conceito e funções

Segundo o Dicionário Aurélio, versão multimídia:

Lenda, do lat. legenda, 'coisas que devem ser lidas'. (1) uma tradição popular. (2) narração escrita ou oral, de caráter maravilhoso, na qual os fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela imaginação poética; legenda. (3)mentira. (4) lengalenga. E, mito, do gr. mythos, 'fábula', pelo lat. mythu. S. m. (1) Narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos. (2) Narrativa na qual aparecem seres e acontecimentos imaginários, que simbolizam forças da natureza, aspectos da vida humana, etc. (3) Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc. (4) Pessoa ou fato assim representado ou concebido. (5) Idéia falsa, sem correspondente na realidade. (6) Representação (passada ou futura) de um estádio ideal da humanidade. (7) Imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, não raro ilusória, elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu comportamento. (8) Coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; utopia. (9)Antrop. Narrativa de significação simbólica, transmitida de geração em geração e considerada verdadeira ou autêntica dentro de um grupo, tendo ger. a forma de um relato sobre a origem de determinado fenômeno, instituição, etc., e pelo qual se formula uma explicação da ordem natural e social e de aspectos da condição humana. (10) Filos. Forma de pensamento oposta à do pensamento lógico e científico.

Brandão(1997), deixa claro, ao referir-se ao mito, que o diferencia de lenda e faz alusão a conceituação de Mircea Eliade, que diz que o mito é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos primórdios dos tempos, tendo a interferência de entes sobrenaturais, dando início a uma nova realidade. Para Brandão, o mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é uma representação coletiva, que chegou aos dias atuais passando de geração em geração. Observa-se que mito e lenda muitas vezes são usados como sinônimos, ou se confundem na expressão popular.

Os mitos e lendas ensinam como interpretar, enfrentar e suportar os sofrimentos emocionais que a vida impõe. Portanto, são de suma importância na compreensão da vida humana. São símbolos inconscientes e coletivos projetados no mundo externo, representando a realidade humana de maneira a facilitar o avançar do espírito humano. Eles são facilitadores do processo de individuação, pois lidam com a transformação da consciência.

O Herói

A palavra herói vem do gr. héros, héroos, pelo lat. *heroe. S. m. (1) Homem extraordinário por seus feitos guerreiros, seu valor ou sua magnanimidade. (2) P. ext. Pessoa que por qualquer motivo é centro de atenções. (3) Protagonista de uma obra literária. (4) Mit. Semideus. (Aurélio, Dicionário Multimídia).

O herói é descrito, via de regra, como sendo filho de pessoas ilustres, de reis, de deuses com humanos, ou é o próprio rei. Desde o seu nascimento, é marcado por situações desafiadoras para sua própria sobrevivência. É órfão, por falecimento ou por ter sido abandonado pelos pais ou por um deles, em razão de alguma ameaça profetizada, antes mesmo de seu nascimento. Então, é acolhido por outra família, geralmente, muito humilde, e, acaba por se destacar por alguma habilidade. Então, acaba por descobrir sua progênie e se dá início a jornada de reconquista da sua identidade, retornando ao local de origem, retaliando o vilão ou seu pai, salvando a donzela ou vítima e conquistando sua própria soberania. Mas, de um modo geral, deve morrer em seguida, para assim ser declarado herói.

É um arquétipo que representa o chamado e a luta pela individuação.

Assim, todos os indivíduos sentem-se desamparados (órfãos) quando se faz necessário desligar-se dos progenitores, em busca de seu próprio caminho. Também, se sentem desamparados frente às exigências irracionais do ego, e há uma convocação para travar uma luta dolorosa para atingir o momento de s e declararem indivíduos, comandantes das própria naus, denominadas vida. Jung afirmou que a individuação é um processo para toda a vida; a cada dia, ruma-se em frente, no fluxo do processo de individuação. Mas isso não significa que a individuação estará ao alcance do indivíduo somente ao final da sua existência. Antes mesmo de seu fim, deve estar em maior harmonia e integrado com o seu próprio Self. Poderá estar individuado, embora, não completamente. Na verdade, como a individuação é um processo, estará se individuando.

Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói, e lá, onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo. (Campbell, 1996, p. 131).

Estar-se-á, assim, nos domínios do inconsciente coletivo.

A lenda

Era uma vez um estancieiro muito rico, mas egoísta e mau, que não dava esmola aos pobres, nem ajudava a ninguém. Tinha um filho sardento, feio e perverso, e um escravo, ainda menino, preto como carvão, bonitinho e bondoso, a quem todos chamavam de Negrinho.

O escravo não tinha nome nem padrinho; por isso, se dizia afilhado de Nossa Senhora, que é a madrinha dos que não a têm. Mal raiava o dia, o Negrinho montava um cavalo baio e saía para pastorear o rebanho do seu senhor. Trabalhava o dia todo, e quando voltava, à noite, para casa, ainda tinha de sofrer as maldades do filho do estancieiro.

Certo dia, um vizinho disse que o seu cavalo era mais veloz do que o baio do estancieiro e o desafiou para uma corrida. Apostaram uma grande quantia de dinheiro. O estancieiro mandou que o Negrinho montasse o seu cavalo. Mas, quase no fim da corrida, quando já estava na frente, o baio se espantou e o outro cavalo venceu.

O estancieiro ficou indignado por ter perdido a aposta e pôs toda a culpa no Negrinho. Chegando em casa, deu no escravo uma surra de chicote até ver o sangue escorrer. E no dia seguinte, pela madrugada, ordenou que ele fosse pastorear trinta cavalos, durante trinta dias, num lugar muito distante e deserto. Lá chegando, cheio de dores pelo corpo, o escravo começou a chorar, enquanto os cavalos pastavam. Veio a noite escura, apareceram as corujas, e o Negrinho ficou tremendo de pavor. Mas, de repente, pensou na sua madrinha, Nossa Senhora, e então sossegou e dormiu.

Durante a noite, os cavalos se assustaram e fugiram, espalhando-se pelo campo. O Negrinho acordou com o barulho, mas nada pôde fazer, porque a cerração era muito forte. Apareceu, nessa ocasião, o filho do estancieiro que, maldosamente, foi contar ao pai que o Negrinho tinha deixado, de propósito, os cavalos fugirem.

O estancieiro mandou surrar, novamente, o escravo. E, quando já era noite fechada, ordenou-lhe que fosse procurar os cavalos perdidos. Gemendo e chorando, o Negrinho pensou na sua madrinha, Nossa Senhora, e foi ao oratório da casa, apanhou um coto de vela, que estava acesso diante da imagem, e saiu pelo campo.

Por onde o Negrinho passava a vela ia pingando cera no chão e, de cada pingo, nascia uma nova luz. Em breve, havia tantas luzes que o campo ficou claro como o dia. Os galos começaram a cantar e, então, os cavalos foram aparecendo, um por um... O Negrinho montou no baio e tocou os cavalos até o lugar que o senhor lhe marcara.

Gemendo de dores, o Negrinho deitou-se. Neste momento, todas as luzes se apagaram. Morto de cansaço, ele dormiu e sonhou com a Virgem, sua madrinha. Mas, pela madrugada, o filho perverso do estancieiro apareceu, enxotou os cavalos e foi dizer ao pai que o Negrinho tinha feito isso para se vingar.

O estancieiro ficou furioso e mandou surrar o Negrinho até que suas carnes ficassem retalhadas e seu sangue escorresse. A ordem foi cumprida e o pequeno escravo, não podendo suportar tanta crueldade, chamou por Nossa Senhora, soltou um suspiro e pareceu morrer.

Como já era noite, para não gastar enxada fazendo cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, para que as formigas lhe devorassem a carne e os ossos. E assanhou bastante as formigas. Quando estas ficaram bem enraivecidas, começaram a comer o corpo do escravo. O estancieiro, então, foi embora, sem olhar para trás.

No dia seguinte, o senhor voltou ao formigueiro para ver o que restava do corpo de sua vítima. Qual não foi o seu espanto quando viu, de pé, sobre o formigueiro, vivo e risonho, o Negrinho, tendo ao lado, cheia de luz, Nossa Senhora, sua madrinha! Perto, estava o cavalo baio e o rebanho de trinta animais. O Negrinho pulou, então, sobre o baio, beijou a mão de Nossa Senhora, e tocou o rebanho, a galope.

Correu pela vizinhança a triste notícia da morte horrível do escravo, devorado na panela de um formigueiro. Mas, pouco, depois, todo o mundo começou a comentar um novo milagre. Muita gente vira, à noite, pela estrada, um rebanho tocado por um negrinho montado num cavalo baio.

E, daí por diante, quando qualquer cristão perdia alguma coisa e rezava, O Negrinho saía à sua procura. Mas só entregava o objeto a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava ao altar de sua madrinha, a Virgem Nossa Senhora. (Santos, 1985, p. 124-127).

A jornada do Herói:

A jornada do herói é um empreendimento que permite ao indivíduo se afastar da imaturidade psicológica, estágio que se caracteriza pela submissão e dependência de recompensas e castigos, encaminhando-se para uma condição de maturidade. O herói não precisa, necessariamente, redimir a sociedade mas, a si mesmo. Tem-se, portanto, o triunfo do ego frente às tendência regressivas.

Apresentar-se-ão dois sistemas descritivos da jornada do herói que, embora apresentem características distintas, também, revelam similaridades. São duas maneiras de se descrever as passagens da jornada do herói e suas implicações psicológicas.

Pearson (1994) descreve a jornada do herói passando por seis estágios, dominados, cada um, por determinado arquétipo, a saber: o Inocente, o Órfão, o Mártir, o Nômade, o Guerreiro e o Mago. Entretanto, esta não é uma estrutura linear e nem tão pouco segue a seqüência descrita; há variações de acordo com os sexos ou momentos culturais, além das diferenças individuais.

"O Inocente e o Órfão dão início à ação: o Inocente vive no estado de graça anterior à queda; o Órfão enfrenta a realidade da Queda. Os próximos estágios constituem estratégias para viver no mundo depois do pecado original: o Nômade inicia a tarefa de se perceber separado dos outros; o Guerreiro aprende a lutar para se defender e mudar o mundo segundo sua própria imagem; e o Mártir aprende a dar, a confiar e a sacrificar-se pelos outros. Assim, a progressão vai do sofrimento para a autodefinição, para a luta, para o amor." (Pearson, 1994, p. 29).

Fases segundo Pearson:

O Inocente não é um arquétipo de herói, pois está indiscriminado — o mundo o serve e o satisfaz em todos os seus desejos. É o estar no Éden. E, como estar no paraíso é apenas uma fase, não podendo ser perpetuada, segue-se a queda, que resulta de uma desilusão e caracteriza o estágio do Órfão, que denota o desejo de retornar ao estado primordial de pureza e inocência, no qual não há dor e sofrimento, e, todas as necessidades são satisfeitas. O Órfão se vê como vítima do mundo. Depois tem-se o arquétipo do Mártir, aquele que se sacrifica acreditando que, assim, virá a redenção. Ele não se vê como vítima do mundo, opta por ser a vítima, na crença de que seu sofrimento trará benefícios ou recompensas a si ou aos demais.

O Nômade é o arquétipo daquele que parte sozinho para explorar o mundo. Vai à busca de aventuras ou de um tesouro perdido. Na verdade, esse é o momento que define o início da jornada rumo a si mesmo pois, aliado à aventura, tem-se o recolhimento interior. Ao desbravar o mundo, o Nômade identifica seus "dragões" e "vilões", e, então, precisa passar para o estágio de Guerreiro para lutar contra eles. É o arquétipo do Guerreiro, que melhor é identificado com o herói ou com o heroísmo. Quando se fala em herói, equaciona-se o Guerreiro.

Enfim, encontra-se o arquétipo do Mago. Aquele que aprendeu, com os outros arquétipos, a responsabilizar-se por si, por seus atos e por suas escolhas, em razão de estar mais consciente de si mesmo, de seus propósitos, de seus anseios, de seus medos. Assim, aceita a realidade como é, com suas diferenças, e luta suas próprias lutas. Seu lema poderia ser "viva e deixe viver". Não precisa provar-se a ninguém.

Etapas segundo Campbell:

Campbell sugere que a saga do herói inicia-se com alguém de quem foi usurpada alguma coisa, e, então, parte numa jornada de aventuras pouco triviais, indo ao encalço do que lhe foi tirado, ou para fazer alguma descoberta e, em seguida, retornar ao ponto de partida, sugerindo uma estrutura circular. Descreve, portanto, a jornada do herói segundo três etapas: a Partida, a Iniciação e o Retorno.

Na Partida, o herói é chamado para sua aventura, podendo aceitar ou recusar o chamado. Se o aceitar, obterá ajuda de algum ser sobrenatural para enfrentar os desafios do percurso. Tais desafios são as provas que enfrentará na fase de Iniciação, que têm por base o enfrentamento das próprias limitações; assim, o herói poderá transcendê-las e, com humildade, encontrar-se. Segue-se, então, a fase do Retorno, que, também, é passível de recusa ou aceitação. Se se recusa a voltar, é porque seu ego ficou inflado, por não se sentir mais um indivíduo comum; há uma identificação com o Self, portanto algo divino. A aceitação indica o retorno ao reino humano.

Através de Pearson e Campbell, observa-se que a jornada do herói é circular, o Mago ou o Herói retornam ao ponto de partida, transformados, mais conscientes de si, mais individuados.

A lenda e a jornada do Herói:

"O Negrinho não tinha nome nem padrinho: por isso, se dizia afilhado de Nossa Senhora". Aqui podem-se encontrar os estágios do Inocente e do Órfão. O Negrinho é bondoso e risonho, apesar de não ter família. Embora seja apenas um escravo de origem humilde, considera-se afilhado de Nossa Senhora, uma deidade; portanto, evidenciam-se paralelos com o mito padrão do herói.

O chamado para a jornada do herói parece ser o fato da perda da corrida de cavalos. A partir desse ponto, inicia-se uma senda de castigos, punições, com o cumprimento de tarefas árduas. Sempre que deve passar por uma provação, o Negrinho invoca sua madrinha e aceita as provações. É mandado a pastorear trinta animais por trinta dias, num lugar muito deserto e distante, o que caracteriza o estágio do Nômade. Lá, ele se desespera e sofre por medo da escuridão, mas busca conforto em sua madrinha, e dorme. Assim, o filho do estancieiro se aproveita e espanta os animais, correndo para contar ao pai que o Negrinho os deixou fugir de propósito. O estancieiro manda surrá-lo mais uma vez

Em seguida, é ordenado a procurar os animais pela mata adentro, na escuridão. Ele, então, pega um toco de vela para iluminar o seu caminho. E a cada pingo de cera no chão se acende uma nova luz (ajuda sobrenatural), que clareia toda a mata e, assim, ele consegue reunir todos os animais. Essas são tarefas da fase do Guerreiro, já que se trata de um escravo, ainda menino, que deve se embrenhar na mata escura e reunir trinta animais. Como está cansado, ao concluir o que lhe foi ordenado, resolve deitar e dormir. Então, o filho do estancieiro afugenta, mais uma vez, os animais e corre para relatar ao pai o ocorrido, atribuindo à atitude do Negrinho um caráter vingativo. É interessante notar que, o Negrinho tem o seu oposto no filho do estancieiro, e este é o fator de maior tensão na lenda. Na verdade, se não fosse o filho do estancieiro, não se teria a lenda heróica do Negrinho. Ele é o responsável por levar o Negrinho ao desfecho. Nessa lenda, portanto, encontram-se dois vilões — o estancieiro e seu filho —, que o Negrinho deve enfrentar. Esse enfrentamento não é feito com armas. O Negrinho os enfrentou com sua fé em sua madrinha, que, no último momento, o livra do grande sofrimento físico imposto.

O estancieiro, então, decide castigar, regiamente, o escravo. Manda açoitá-lo até sangrar. O Negrinho, não suportando tanto sofrimento, clama por Nossa Senhora e parece morrer. Então, o estancieiro ordena que coloquem o corpo do Negrinho na panela do formigueiro, para que as formigas devorem o seu corpo. A panela do formigueiro é "a cavidade subterrânea onde as formigas depositam suas larvas" (Aurélio, dic. multimídia). Pode-se, então, comparar a panela do formigueiro à barriga da baleia na jornada heróica de Jonas, onde o herói é engolido por uma baleia e volta, depois, transformado. É a descida às trevas, na qual a personalidade consciente entra em contato com as energias inconscientes sombrias, para aprender a lidar com elas, e emerge em direção a uma nova vida. E assim, no dia seguinte, o Negrinho é encontrado vivo e risonho, de pé, ao lado de Nossa Senhora que, no caso, não deixa de ser uma representação da psique total.

A idéia de que o herói deve morrer é uma característica do arquétipo, a qual representa transformação, não necessariamente morte física. Denota uma transformação da consciência. Na mitologia, observa-se que, após sua morte, o herói se transforma em deus, transcendendo a condição humana, ou, psicologicamente, transcendendo o ego em busca do Self. A morte simbólica denota o início da fase de maturidade. Na lenda, o parece morrer deixa transparente esse sentido de transformação e transcendência. O Negrinho transcende a noção de desamparo e se firma, vivo e risonho, cônscio de sua própria força, além do próprio ego. E, têm-se aqui a fase do Retorno, na qual o Negrinho aparece com os trinta animais, além do estágio do Mago, visto que permanece em seu estado de inocência (risonho e faceiro), sem pretender agredir ou retaliar seu algoz, ou seja, ele não cede a uma possível necessidade egóica de retaliação frente aos seus malfeitores. Ele aprendeu, durante a jornada, com as duras tarefas e provações, com a ajuda sobrenatural, com o recolhimento e a descida às trevas, que estava livre para ser o que era, e fazer o que bem sabia fazer.

Ao tecer paralelos entre a lenda do Negrinho do Pastoreio e a Jornada do Herói, permeia-se uma região ainda repleta de mistérios, que acalenta o pensar junguiano, o inconsciente coletivo, que abrange a história do mundo com todas as suas transformações, relatando a saga de seus heróis e heroínas, por intermédio da projeção dos arquétipos através dos tempos, sem desrespeitar a mutabilidade imposta pelo próprio desenvolvimento da humanidade. Assim é, mais uma vez, demonstrada a universalidade do arquétipo.

Considerações finais

O Negrinho do Pastoreio é, até os dias de hoje, invocado, pelos devotos, quando se trata de encontrar objetos ou afetos perdidos, bastando, para tal, acender um toco de vela em sua intenção. Foi imortalizado, também, através do cancioneiro popular, em música e letra de Luis Carlos Barbosa Lessa.

Negrinho do Pastoreio

Negrinho do Pastoreio

Acendo essa vela pra ti

E peço que me devolvas

A querência que eu perdi

Negrinho do Pastoreio

Traz a mim o meu rincão

Eu te acendo essa velinha

Nela está meu coração

Quero rever o meu pago

Coloreado de pitanga

Quero ver a gauchinha

A brincar na água de sanga

E a trotear pelas coxilhas

Respirando a liberdade

Que eu perdi naquele dia

Que me embretei na cidade

Referências Bibliográficas

AURÉLIO Século XXI - dicionário em versão multimídia.

BRANDÃO, Junito de Souza. (1997) Mitologia Grega. Vol. I . Petrópolis: Vozes.

CAMPBELL, Joseph. (1992) O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix.

____. (1996) O Poder do Mito com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena.

PEARSON, Carol S. (1994) O Herói Interior. São Paulo: Cultrix.

SANTOS, Theobaldo Miranda. (1985) Lendas e Mitos do Brasil. São Paulo: Editora Nacional.

Sinopse

A autora correlaciona uma lenda do folclore brasileiro, Negrinho do Pastoreio, com a Jornada do Herói, tomando por base as fases descritas por Pearson e Campbell.

Abstract

The author correlates a legend Brazilian folklore, Pasturing Little Negro, with the Hero's Journey, taking for base the phases described for Pearson and Campbell.

Sinopse

A autora correlaciona uma lenda do folclore brasileiro, Negrinho do Pastoreio, com a Jornada do Herói, tomando por base as fases descritas por Pearson e Campbell, demonstrando que o arquétipo do herói é vivenciado por qualquer pessoa, em qualquer momento histórico, em qualquer região do planeta, por ser uma etapa importante do processo de individuação.

Abstract

The author correlates a legend of the Brazilian folklore, Pasturing Little Negro, with the Hero's Journey, taking for base the phases described for Pearson and Campbell, demonstrating that hero's archetype is experienced for anybody, at any time historical, in any planet region, for being an important stage of the individuation process.